terça-feira, 19 de outubro de 2021

A cultura do consumo de carne não sustenta e não é sustentável!




Melhor proveito de uma vaca: Terapia de abraços!




A tradição na criação de bovinos no Brasil começou com a invasão dos europeus no país. De início, a principal função dos animais era tração animal para os engenhos de cana-de-açúcar. Porém, logo se tornou um problema, à medida que aumentava o rebanho, o gado disputava espaço com a monocultura da cana. A Coroa portuguesa então, delimita a área onde poderiam ser criados para longe da costa, o que acaba transformando o gado em um meio de expansão territorial para o interior do país.


Mais tarde no século XVII, a pecuária já havia se consolidado no país. Agora bem mais do que tração animal, a criação de gado abastecia os centros urbanos. À época, haviam diversos latifúndios dedicados à pecuária extensiva, especialmente no Nordeste. Portanto, muitas das tradições e hábitos, ligados à criação bovina se fazem tão presentes desde a colonização, e acompanham a história do povo nordestino. Um exemplo é a figura do vaqueiro, que de início, eram homens livres, por vezes filhos mestiços de índígena e branco, e que constituía a grande parte da mão de obra livre e assalariada da época.


Nesse contexto, fica difícil argumentar contra uma prática que faz parte da nossa cultura. E voltar às origens, de como se fazia antigamente, antes da revolução verde e de todos os malefícios advindos das práticas do agronegócio, parece a coisa certa a se fazer. Contudo, nós não podemos nos dar ao luxo de romantizar a pecuária. Nós não estamos nas terras ricas que existiam no século XVII. A própria prática de pecuária extensiva é um dos principais fatores para a degradação dos nossos biomas. Particularmente onde criar gado é norma na economia rural, seja para grandes ou pequenos produtores. A Caatinga, em especial, é um dos biomas que estão mais ameaçados. E muitas das mesmas regiões onde a pecuária foi mais bem sucedida, hoje se encontram desertificadas, ou em processo de desertificação. Suportando, as vezes por anos seguidos, duros períodos de seca, que não mais sustentam a tradição do sertanejo de criar esses animais, levando ao inevitável êxodo rural por conta da fome e miséria consequentes.


E não é só o clima nessas regiões que foi afetado. Sofremos hoje com as consequências do desmatamento, da desertificação e degradação do solo, como também da poluição do ar, água e solo, gerado pelas práticas humanas. Dentre elas, uma das maiores responsáveis é justamente a agropecuária, sobretudo no Brasil. Com a expansão do uso de terras, e consequente desmatamento de florestas, degradação do solo, o uso de água para a produção de alimento para os animais, nas culturas de grãos e leguminosas, com consequente poluição por agrotóxicos, e para o próprio consumo animal. Que, no caso das vacas leiteiras, pode variar entre 80 a 180 litros de água para cada uma por dia, dependendo da sua produção. A agropecuária é, nesse sentido, a maior responsável pelo consumo de água no mundo. São 70% globalmente, e 72% no Brasil apenas. E ainda há a emissão de gás metano, que tem 28 vezes mais poder de aquecimento da atmosfera do que o gás carbônico, e tem os bovinos como maiores responsáveis por essa emissão.

Proporção de gado para humanos e mamíferos silvestres na superfície da Terra.


Além disso, a expansão do uso das terras para a criação agroecológica de gado, se continuarmos consumindo seus produtos no mesmo nível atual, não justifica os resultados. Já que apenas cerca de 18% das calorias e 37% das proteínas na alimentação humana, são advindas do consumo de carne e laticínios. Logo, diminuir esse consumo é mais benéfico para o meio ambiente, do que a criação “sustentável” de gado. Já que a área necessária para o pastejo do gado aumentaria em mais de duas vezes comparado a atual. Além é claro, do espaço necessário para o cultivo de grãos e leguminosas na propriedade, destinados à complementação da dieta desses animais. Diminuindo ainda mais o espaço para as possíveis culturas de plantas alimentícias, que constituem a maior fatia da nossa dieta.



A proposta de transição agroecológica da criação e manejo de animais para agricultores familiares, que além de geralmente não possuírem incentivo fiscal ou capital para essa transição, podem não dispor de área suficiente para esse tipo de manejo. Manejo esse, limitante e demorado, podendo se arrastar por décadas. E, ao menos inicialmente, não interessante economicamente para o produtor. Já que demanda toda uma mudança de paradigma, estrutura, habilidades e costumes. E quando estamos enfrentando as mudanças climáticas, seria muito mais apropriado, como indivíduos e coletivo, que estivéssemos revendo as práticas que nos trouxeram aqui, do que nos dispondo a terceirizar a responsabilidade com a vida na Terra para àqueles que produzem nossos alimentos.


A nossa alimentação é a base de tudo. E, uma das principais formas de mudança, é nos reeducar e adotar melhores práticas de dieta. Com isso podemos parar nossa contribuição para a insalubridade do planeta, e de preferência, contribuir positivamente para sua revitalização. Nos preocupando com a origem e os processos de produção, para começar. Adotando práticas reais de regeneração do solo e da biodiversidade. E não transformando potenciais áreas de regeneração em sistemas silvipastoris, limitando esse potencial.


Como um sertanejo pode, por falta de escolha, sair de sua terra e ir tentar a vida na cidade, com consequente inchaço das cidades e aumento dos problemas ligados à vida urbana. Há também a possibilidade de aprender novos cultivos e produções. O compromisso do produtor rural é primeiramente com a produção de alimento, é sua relação com a terra. Não oferece nenhuma vantagem para ninguém, deixá-lo alienado da urgência na mudança de costumes. E portanto, o que deve ser pensado são novas formas de produzir e regenerar, junto ao agricultor. Que tenha benefício, tanto para o indivíduo que produz, como para o meio em que ele existe. Para que assim ele possa continuar trabalhando dignamente, e deixar um legado que possa ser reproduzido e aproveitado pelos seus descendentes.


Em alternativa à fabricação de queijo animal, temos por exemplo, o queijo vegano feito de castanha de cajú, que está dentro do que pode ser feito no Nordeste. Ou mesmo o processamento familiar ou em cooperativas, de culturas já conhecidas e muito usadas na região. Como a macaxeira, o amendoim, frutas que podem ser desidratadas (banana, manga, etc.), entre outras alternativas mais compatíveis com a escassez de água comum ao semi-árido. Tudo isso pode ser produzido em formas regenerativas de cultura, como na permacultura e na agrofloresta. E de forma coletiva, aproveitando melhor o espaço. O que além de aumentar a diversidade de alimentos disponíveis para as populações, num processo de transição agroecológica muito mais abundante, menos onerosa e com capacidade maior de fornecimento de alimento. Ainda garante a segurança econômica da família, sua segurança alimentar e principalmente, sua soberania alimentar.


O que nos impede de evoluir para práticas assim, além da tradição, é um culto ao consumo de produtos de origem animal, especialmente a carne, que serve ao agronegócio e a conservação do status quo. É portanto mais fácil se adaptar e adotar práticas mais sustentáveis, do que rever e evitar essas práticas por inteiro. Que é o que vem acontecendo com a propagação de ideias como a de “pastos regenerativos” sendo propagandeados como a principal forma de salvação para o planeta, e manutenção do estilo de vida humana. Como se isso fosse possível no momento em que as mudanças climáticas não são mais uma questão de quando, mas que já fazem parte de nossa realidade. Essa “sustentabilidade” é mais uma preocupação econômica de continuar explorando, do que ecológica. Não temos mais a opção de diminuir nosso impacto, isso deveria ter acontecido há mais de trinta anos atrás. Agora devemos trabalhar para regenerar a Terra ao jardim que ela era quando nossa espécie iniciou seu processo de ascensão e alienação perante à toda a vida no planeta.


*Texto originalmente escrito como atividade do curso de Agroecologia do IFS de São Cristóvão - Sergipe.


Referências:


Palestra “Bovinos em Sistemas Sustentáveis" ministrada pela professora Irinéia Rosa do Nascimento para alunos da disciplina de Seminários em Agroecologia e demais alunos do campus que estiveram presentes no dia 05 de março de 2021 pela ferramenta Google Meet.
 


A Growing Business. Cow cuddling : Animal Sanctuary in Maybee Michigan. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Jk5TaaJe2bU>. Acesso em 19 out. 2021.
 
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EMISSÕES globais de metano aumentaram 9% entre 2000 e 2017. EcoDebate, 2020. Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2020/08/31/emissoes-globais-de-metano-aumentaram-9-entre-2000-e-2017/>. Acesso em 11 de mar. de 2021.


PENA, Rodolfo F. Alves. Atividades que mais consomem água. Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/atividades-que-mais-consomem-agua.htm>. Acesso em: 12 de março de 2021.

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